O Vale do Javari

(1) Conferir: Van Vliet, N et al. (2014). “The uncovered volumes of bushmeat commercialized in the Amazonian trifrontier between Colombia, Peru & Brazil”. In: Ethnobiology and Conservation, 3 (7): 1-11.

A Terra Indígena (TI) Vale do Javari é um território com mais de 85 mil km² de floresta amazônica às margens do rio Javari, na fronteira entre o Brasil e o Peru, reconhecida como terra indígena pelo governo brasileiro em 1999, demarcada em 2000 e homologada pelo Presidente da República em 2001. Mas tal homologação da TI situa-se em um contexto de demandas políticas por parte de diferentes setores da sociedade civil ainda nos anos 1970.

Os anos 1970 marcaram o início de uma série de articulações que modificaram as políticas indígenas e indigenistas. No Brasil, o Estatuto do Índio (Lei 6.001/73) foi criado durante o regime militar diante das pressões internacionais acerca da proteção aos indígenas. No entanto, a partir dos anos 1980, houve pressões internacionais em torno do tema da Anistia, dos Direitos Humanos, e uma crítica às políticas desenvolvimentistas operadas pelo regime militar.

Tal movimentação gerou atritos entre o Estado brasileiro, os movimentos internacionais e as agências de financiamento. Nesse contexto, criaram-se organizações não governamentais (ONGs) que estreitaram os diálogos entre os antropólogos e as universidades acerca da proteção dos povos indígenas. Se nos anos 1950-60, a questão indígena era monopolizada pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI, criado em 1910), substituído em 1967 pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), nos anos 1970 houve uma difusão das frentes de atuação na questão indígena. A ideia de demarcação das terras indígenas ganhou centralidade. Surgiram esforços de mapeamentos dos povos indígenas como, por exemplo, o Programa Povos Indígenas no Brasil, do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), do Instituto Socioambiental (ISA).

Em 1984, no Brasil, a transição para a Nova República caracterizou-se pela saída dos militares da FUNAI e pela atuação de indigenistas inspirados na ideologia do Marechal Rondon. Os antropólogos passaram então a atuar em postos administrativos da FUNAI com pesquisas aplicadas, consultorias a projetos de desenvolvimento regional, como o POLONOROESTE e o Projeto Carajás. Dessa forma, a pressão internacional impôs ao governo brasileiro processos de avaliação de impactos ambientais e sociais de grandes projetos sobre a vida dos povos indígenas. Tratava-se da produção de Estudos de Impacto Ambiental (EIA) e Relatórios de Impacto Ambiental (RIMA), dentre outros documentos de assessoria, consultoria, laudos e perícias. As questões indígenas passaram a ser também do interesse de órgãos, como a Procuradoria Geral da República e a Secretaria do Meio Ambiente.

O Conselho Nacional de Segurança, na gestão de Romero Jucá, controlava a FUNAI e inviabilizava os projetos e as ações de reforma agrária. Lançaram então o Projeto Calha Norte que visava ações militares nos rios Solimões e Amazonas. Propagava-se a falsa ideia de que havia “muita terra para pouco índio”. Contudo, após a promulgação da Constituição de 1988, o panorama mudou. 

A mobilização das populações indígenas em torno da Constituinte ganhou visibilidade internacional. A partir de então, reconheceu-se a capacidade processual civil das comunidades indígenas e de suas organizações, como o título VIII (Da Ordem Social), capítulo VIII (Dos índios), da Constituição de 1988 afirma:

Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.

 

Houve então uma proliferação de organizações locais sob formas variadas, como associações, conselhos, federações indígenas, por vezes, com vínculos internacionais. O Vale do Javari insere-se nesse contexto de articulações desde os anos 1980, quando criou-se o Conselho Indígena do Vale do Javari (CIVAJA) que atuou na demanda pela demarcação da Terra Indígena Vale do Javari e no combate às epidemias sanitárias que assolaram a região ao longo dos anos 1980, 1990 e 2000.

O protagonismo dos povos indígenas do Vale do Javari se consolidou e, desde 05 de abril de 2010, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (UNIVAJA) atua na defesa dos direitos e no atendimento às demandas dos povos indígenas da Terra Indígena Vale do Javari. Trata-se de uma “uma entidade civil de direitos privados, sem fins lucrativos, partidários e religiosos, com sede e foro na cidade de Atalaia do Norte, no estado do Amazonas”.

O término do processo de regularização fundiária da Terra Indígena Vale do Javari, com decreto de homologação, registro na Secretaria do Patrimônio da União e no Cartório de Registro de Imóveis, data de 02 de maio de 2001. Com extensão de 8,5 milhões de hectares, constitui a segunda maior terra indígena do Brasil. A área da Terra Indígena Vale do Javari incide em quatro municípios do estado do Amazonas: Atalaia do Norte, Jutaí, Benjamin Constant e São Paulo de Olivença.

Trata-se de um território compartilhado por sete povos indígenas: Korubo, Kulina-Pano, Marubo, Matis, Matsés (pertencentes à família linguística Pano), Kanamari e Tsohom-Dyapa (pertencentes à família linguística Katukina). Destes, os Korubo e os Tsohom-Dyapa são povos indígenas de “recente contato”, cuja população é reduzida em comparação aos demais povos.

Conforme dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), em 2020, a população destes sete povos somava 6.317 pessoas. A Terra Indígena Vale do Javari abriga ainda um dos maiores contingentes populacionais de povos indígenas “isolados”. Além de dezesseis registros da presença de coletivos isolados, dentre os quais dez são confirmados (o que corresponde a 36% dos registros de indígenas isolados confirmados no Brasil).

Desde o século XIX, a região do Vale do Javari foi alvo de intensas explorações de recursos e atividades ilegais: extração de borracha, madeira, petróleo e gás, o narcotráfico e as tentativas de construções de empreendimentos, como a Rodovia Perimetral Norte. Tais atividades impactaram diretamente a vida dos povos indígenas do Vale do Javari. A demarcação e homologação da TI Vale do Javari foi um passo importante para assegurar a sobrevivência física e cultural destes povos e contou com as reivindicações do movimento indígena local, atualmente denominada de UNIVAJA.

A partir do final dos anos 1990, foram criadas as Bases de Proteção Etnoambiental (BAPE/FUNAI) para garantir a proteção territorial do Vale do Javari. Atualmente, a FUNAI possui cinco BAPEs na TI Vale do Javari, nos rios Curuçá, Jandiatuba, Coari, Quixito, e na confluência dos rios Ituí e Itaquaí. Apesar da presença dessas BAPEs, os cortes orçamentários, as mudanças de gestão, os déficits de recursos humanos e as evasões de servidores são fatores que têm enfraquecido a atuação da FUNAI na TI Vale do Javari. 

Esse contexto coloca a TI Vale do Javari no seu momento mais crítico de invasões desde a sua demarcação no início dos anos 2000. Incentivadas por um discurso político de afrouxamento das regras e práticas de fiscalização, essas invasões se evidenciaram com mais de oito ataques a disparos com armas de fogo à principal BAPE/FUNAI, localizada na confluência dos rios Ituí e Itaquaí, a partir de 2018 e culminou com o assassinato de um dos servidores da FUNAI, Maxciel Pereira dos Santos, no início de 2019.

A falta de fiscalização eficaz e permanente por parte da FUNAI constitui um dos maiores desafios aos povos indígenas do Vale do Javari, pois se expressa no aumento exponencial das invasões para a extração ilegal de recursos, como carne de caça e pesca. Em busca de carne de caça, pirarucu, tartarugas e tracajás, pescadores e caçadores ilegais invadem a TI Vale do Javari e se espalham por vários rios e igarapés para atender a demanda do mercado de carne de caça e pesca da tríplice fronteira Brasil-Colômbia-Peru: um dos maiores mercados de carne de caça do mundo, somente comparado aos mercados de caça da África Central. Pesquisas recentes indicam que o comércio de carne de caça ilegal é central na região: em 2013 e 2014, cerca de 278 toneladas de carne de caça foram comercializadas anualmente nas cidades do entorno da TI Vale do Javari (1). Essas invasões ameaçam diretamente a segurança física e alimentar dos povos indígenas aldeados e isolados.

A ação de garimpeiros ilegais de ouro, com o uso de mais de uma centena de balsas e dragas nos rios Jutaí, Jandiatuba e afluentes, ao longo dos últimos 20 anos na parte nordeste da TI Vale do Javari, tem promovido violência e degradação ambiental. Essa situação ameaça gravemente indígenas isolados e os Tsohom-dyapa de recente contato que vivem nessa porção da TI Vale do Javari. Em 2020, a UNIVAJA em sobrevoo realizado junto a FUNAI observou que o garimpo ilegal nessa porção da TI tem forçado os isolados korubo a se deslocarem compulsoriamente para outras áreas, a fim de garantir a sua sobrevivência.

Hoje, os principais desafios à integridade física e cultural dos povos indígenas da TI Vale do Javari são: 1) atividades de caça e pesca ilegais para fins comerciais; 2) o garimpo ilegal nos rios Jandiatuba e Jutaí; 3) o narcotráfico na região da tríplice fronteira Brasil-Colômbia-Peru; 4) a exploração madeireira; 5) a expansão agropecuária no Vale do Juruá; 6) a exploração de petróleo e gás; 7) o proselitismo religioso, como o assédio de missionários que objetivam realizar contatos forçados com povos indígenas isolados; 8) epidemias de doenças infectocontagiosas e do novo coronavírus.